quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ela*
ela tinha um sorriso inteiro
ela ensinou outras moças do seu tempo a ler e a escrever
ela e as companheiras, assim que ouviam a sirene da fábrica, largavam tudo e marchavam 6 Km para ir arranjar sardinhas, horas depois o trabalho estava feito, as mãos congeladas e ainda tinham que regressar
ela tinha uma horta
ela dizia çabolas e cultivava as mais bonitas
ela ensinou-me a debulhar milho, a apanhar tomate, a regar, a lavar tripas para fazer enchidos
ela ensinou-me a separar as batatas boas das más, eram más para nós, mas boas para os porcos, que as achavam deliciosas e com isso ensinou-me que as coisas são muito mais do que a sua aparência
ela fazia os melhores biscoitos, o melhor pão e a melhor manteiga cor-de-rosa
ela cheirava a sabonete português e a campo
ela fechava os olhos, ajeitava os óculos e o cabelo para dentro do lenço e por fim apertava o elástico do chapéu, sempre com gestos suaves
ela tinha um carrapito que nunca mais vi desde que ficou viúva
ela, quando a aldeia passou a vila, foi à Assembleia da República para assistir à declaração oficial
disse-me que achou aquilo pequeno, que na televisão parecia bem maior
acho que a Assembleia não está é muito habituada a receber pessoas grandes como ela
ela não era da minha família, não era minha vizinha, ela foi a minha primeira amiga
nunca lhe disse o quanto gostava dela, que estúpida, que estúpida, que estúpida que sou

as fotografias acima são excertos de um retrato dela, tirado pelo fotógrafo João Carrondo, que gentilmente mo ofereceu