domingo, 8 de junho de 2014

Conseil tenu par les rats, Gustave Doré (1832-1883)


O conselho dos  ratos*

Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era o seu nome,
Sua alcunha Esgana-Ratos.

As ratazanas mais feras, 
Apenas o percebiam,
Mesmo lá dentro das tocas
Com susto dele tremiam;

Que amortalhava nas unhas
Inda o rato mais machucho,
Tendo para sepultar
Um cemitério de bucho.

Passava por entre aqueles pobres,
De quem ia dando cabo,
Não por gato maltês,
Mas por um vivo diabo.

Mas Janeiro ao nosso herói 
Já dor de dentes causava,
E ele de telhas acima
O remédio buscava.
Entanto o deão dos ratos, 
Achando léu ajuntou
Num canto do estrago o resto,
E ansioso assim lhes falou:

"Enquanto permite a noite,
Cumpre irmãos meus, que vejamos
Se à nossa comum desgraça
Algum remédio encontramos.

Rodilardo é um verdugo
Em urdir nossa desgraça,
Se não se lhe obstar, veremos
Finda em breve a nossa raça.

Creio que evitar se pode
Esse fatal prejuízo;
Mas cumpre que do agressor
Se prenda ao pescoço um guizo.

Bem que ande com pés de lã,
Quando o cascavel tenir,
Lá onde quer que estivermos
Teremos léu de fugir."

Foi geralmente aprovado
Voto de tanta prudência;
Mas era dúvida achar
Quem fizesse a diligência.

Vamos saber qual de vós,
Disse outra vez o deão,
Se atreve a dar ao proposto
A devida execução.

"Eu não vou lá", disse aquele;
"Menos eu", outro dizia;
"Nem que me cobrissem de ouro"
Respondeu outro, "eu lá ia".

"Pois então quem há-de ser?"
Disse o severo deão;
Mas todos à boca cheia
Disseram: "Eu não, eu não."

Tornou-se em nada o congresso;
Que o aperto às vezes é tal,
Que o remédio que se encontra
Inda é pior do que o mal.

Assim mil coisas se assentam
Numa assembleia ou conselho;
Mas vê-se na execução, 
Que tem dente de coelho.

Jean de La Fontaine (1621-1695), tradução de Curvo Semedo (1766-1838)